*Eduardo Daniel | www.twitter.com/eduardosdaniel
De tempos em tempos, hábitos costumeiros são suplantados por outros nem sonhados outrora. Ao menos dois deles de minha época de moleque hoje soam quase que absurdos: não comprávamos água mineral para beber em casa e não pagávamos para jogar futebol.
Não que a água da torneira fosse muito mais limpa há 20 anos do que é hoje. Por certo a paranóia que nos assola atualmente não era tanta. Nós tínhamos era medo do russo que guardava o botão da Bomba H e das ogivas nucleares americanas prontas para voarem sobre o planeta. Eram medos distantes do nosso mundinho sem celular e internet, eram temores de quem ainda se recuperava do resfriado da Guerra Fria.
A água, bebíamos de duas maneiras: em casa, nos filtros de barro, e na rua, na torneira, diretamente com a boca ou com as mãos imundas em forma de concha. Esta segunda modalidade de ingestão da água era muito comum após os jogos de futebol nos terrenos baldios.
As crianças de hoje jogam futebol duas vezes por semana, supervisionadas por um professor, em um campo de gramado sintético, com uniforme completo, e com hora marcada para terminar a partida, acham que são mais felizes do que nós, que dividíamos os times em com camisa e sem camisa, jogávamos descalços e gramado era pasto pra cavalo. Pobres coitados.
Os nossos campos eram de chão batido, a grama era rala e rara, a duração da partida era determinada pela luz do sol, não pagávamos para jogar e durante o horário de verão as partidas aconteciam todos os dias depois da escola dos que estudavam a tarde.
O bairro Santo Antônio de Pádua, em Tubarão, ao Sul de Santa Catarina, aonde cresci, era rico em terrenos baldios transformados em campinhos de futebol. Nenhum deles possuía qualquer estrutura. Alambrado, marcação com cal, traves, isso era um luxo para os profissionais. A lateral e a linha de fundo eram fronteiras invisíveis e bandeiras e juizes eram os próprios jogadores. Praticamente não exista falta.
Também não existam goleiros (talvez por isso o Brasil fosse tão carente nesta posição). Jogávamos com duas travinhas pequenas, com o perdão da redundância. A regra mais importante e a mais difícil de ser cumprida era a do zagueiro que ficava plantado na travinha. Não existia impedimento. Era normal que os piores jogadores de cada time fossem colocados ou na banheira (ataque) ou na defesa. Para o defensor valia mais a artimanha de ludibriar os outros e disfarçadamente se postar entre os tijolos, chinelos, paus ou pedras, que geralmente faziam o papel de traves.
Nos jogos em que eu participava, emprestava duas traves de ferro (por sinal, só jogava mesmo porque era o dono das traves e normalmente era o atacante ou o zagueiro). Com as traves de ferro o papel do defensor era ainda mais fácil: bastava sentar-se no travessão.
De todo modo os adversários alertavam para a prática ilegal. Riscávamos no chão uma área que limitava o recuo do defensor, mas num ataque eram comuns uns passinhos indevidos para trás. Briga na certa! Ou o atacante se queimava e metia um bago nos bagos do zagueiro ou soltava um pombo sem asas e a bola perdia-se no terreno de um vizinho.
Era um drama quando se enfrentava um time com um plantado na travinha. Não havia meio de fazer um gol. Ou melhor, havia: chutávamos a bola nas mãos do zagueiro desgraçado a procura de um pênalti.
Para a cobrança da penalidade, por sinal, armávamos mais brigas. A primeira para definir a forma de cobrança. Eram duas escolhas: do meio do campo, sem o defensor, ou de cinco passos de distância da meta, com o zagueiro de lado. Se a segunda era escolhida era difícil o “goleiro” ficar parado.
Podia perguntar na época se algum atacante sonhava em um dia eliminar o zagueiro plantado na travinha. Todos iriam dizer que sim.
Hoje, no futebol, depois de ter sido banida, a paradinha (quando o jogador faz que vai, não vai e depois vai) na cobrança de pênaltis voltou. Em matéria de penalidades duas coisas me chamam a atenção: jogador canhoto (hoje é o dia mundial do canhoto) raramente converte seu tento e um goleiro jamais defende um pênalti cobrado com a famigerada paradinha.
No meu tempo o zagueirão plantado na trave era o pesadelo do atacante. Uma covardia! Agora é o atacante que vai a forra em cima do goleiro com a paradinha, um verdadeiro crime consentido pela regra.
Sinais do tempo em que muitos outros crimes de toda ordem são cometidos sem que os responsáveis sejam punidos. Vide os escândalos políticos e futebolísticos...
4 comentários:
Numa menção honrosa, ontem (13/08) o Marcos pegou um penal, com paradinha.
E tinha que ser logo o Marcos para derrubar meu texto! Sou gremista, mas é de se admitir que o Marcos, apesar dos 36 anos, está acima da média.
Viva o São Marcos...Bons Tempos!
Quando acharmos um terreno baldio sem uns caras estranhos que soltam fumaça com cheiro esquisito, deixo meus piás jogarem bola lá. Eu, particularmente, jogava na rua, mesmo que fosse com terreno "enladeirado", com calçamento de paralelepípedo, mas hoje seríamos atropelados e sem socorro...
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