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Destaque Quitandas e a volta aos tempos românticos Thiago Schwartz


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terça-feira, julho 28, 2009

Felipe Massa e a minha Caloi

*Eduardo Daniel | www.twitter.com/eduardosdaniel

— Freia! Vem um carro!

Lembro da face transfigurada em terror e da voz gutural e angustiada, como tivesse saída de um sonho ruim, de meu primo Samuel, na esquina da Rua Paulo Luiz Gomes com a Ferreira Lima, naquele fim de tarde de um sábado perdido nos inesquecíveis anos 80.

Saíamos da casa da nossa avó, a dona Mafalda, típica descendente de italianos. Sua casa e ela ainda sobrevivem aos tempos e a modernidade que se apossou da Paulo Luiz Gomes, no Bairro Santo Antonio de Pádua, em Tubarão. A ameixeira do fundo do quintal não existe mais, mas o galinheiro e o pomar, embora hoje pareçam infinitamente menores, estão lá para contar a história.

Era um sábado de verão na década aonde nasceu e morreu minha infância. A gente se dava ao luxo de “sumir” por uma tarde inteira, sem nossos pais sofrerem um ataque de pânico. À noite, debaixo dos postes, o espetáculo das carochas pintava as ruas de chão (maioria no meu bairro) de preto.

O dia estava por terminar. Eu ia para minha casa e meu primo dormiria com minha avó. Despedia-me do cheiro do café que só o dela tem, a maneira de cortar o pão d’água, em várias fatias no sentido comprido da massa, talvez para saborear ainda mais a margarina que parecia ter apenas na casa dela, o sol enfraquecido pelas cortinas alvas das duas janelas da cozinha e da água na caneca de metal do filtro de barro que ainda hoje tem serventia em cima da sua antiga pia.

Cada um montou como cavaleiro em sua bicicleta. Duas Calois. Meu primo venceu primeiro o portão entrecortado pelo muro baixo tomado por “unhas de gato” e disparou rumo à esquina.

Sai atrás, sem respirar, da mesma forma que um Kamikaze se atirava contra um porta-aviões dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. No cruzamento, Samuel para bruscamente. As rodas de sua bicicleta derrapam. Ele olha para trás e me vê crescendo rumo à morte.

— Freia! Vem um carro!

Estava perto demais. Tentei parar, mas a bicicleta ainda lutou contra as leis da física por alguns instantes. O suficiente para me colocar de corpo inteiro no meio do automóvel que surgia para me devorar. Engoli em seco e com sangue frio dei mais uma pedalada. O necessário para deixar apenas a roda traseira na mira do pára-choque furioso.

Voei uns dez metros, dando voltas abandonado pela gravidade. Nestes segundos vi o céu azul entrecortados por carneiros travestidos de nuvens e as casas que até hoje estão lá como testemunhas mudas do acidente.

Ao cair, tive apenas a vontade antagônica de me levantar. Bati com as mãos em meu corpo esguio de criança, como que recontando os ossos e nada de errado encontrei. Estava descalço. Fui à caça dos chinelos e ao reencontrá-los foi que vi o único ferimento: um arranhão no metatarso do meu pé esquerdo.

A motorista do veículo, que meus precários conhecimentos automobilísticos imberbes não me permitiram registrar, saltou em estado de choque. Queria a todo custo me levar ao hospital. Como qualquer criança minha preocupação era outra: esconder da mãe. Por isso neguei ajuda (e nem precisava).

Fosse hoje certamente ela chamaria os bombeiros, mas estávamos nos politicamente – e melhores – incorretos anos 80.

Meu primo estava ali, parado, assustado. Eu devia tremer muito e estar branco como as folhas imaculadas de um caderno de desenhos, mas do meu estado físico não lembro. Ainda hoje posso ver a bicicleta transformada em uma meia Lua, atirada no paralelepípedo irregular da Ferreira Lima.

Tratei de juntá-la e dispensei meu primo. Tinha medo que minha mãe soubesse. Apenas eu e minha irmã conhecemos o poder de seu beliscão no bíceps. A todo custo levei minha Caloi para casa. Como todo bom garoto da época, tinha um amigo mais velho, vizinho da frente, a quem pedi socorro para concertar o estrago na “magrela”.

Forçando daqui, forçando dali, eu e o Rodrigo conseguimos dar uma tapeada. Olhei para os dois lados da rua umas cinco vezes antes de atravessar, tentando segurar o coração que teimava em pular no meu peito. Treinava tudo o que poderia dizer para minha mãe a fim de dissuadi-la do acontecido.

Ela veio ao meu encontro no portão. Primeiro com um ar extremamente preocupado:

— O que aconteceu Dudu?

— Nada mãe, eu cai e entortei um pouco a bicicleta... – respondi segurando meus ossos que sacudiam e vi sua preocupação se transformar em ira.

— Eu sei que tu foi atropelado!

O roxo do beliscão por eu ter mentido deve ter ficado no braço por mais tempo e doeu mais do que o arranhão no pé esquerdo. Ainda não entendi como, em uma época sem telefone em nenhuma das duas casas, minha mãe ficou sabendo do atropelamento antes que eu chegasse. Meu primo contou para minha avó, mas como contaram para a dona Adelair, para mim, segue um mistério.

Imagino a mãe do piloto brasileiro Felipe Massa, a dona Ana Elena Massa, distraída até ouvir o nome de seu filho envolvido em um acidente no treino da última corrida pela Fórmula 1. Depois as notícias vão se tornando mais densas e o clima em sua residência deve ter se tornado sólido ao ponto de ser tocado com as mãos.

Certamente ela gostaria de ver o filho sem nenhum arranhão e tasca-lhe um belo beliscão, morrendo de vontade de dar-lhe um demorado abraço de alívio.

Lembrei desta minha história, porque muitos não acreditam nos detalhes que conto. Duvidam que o atropelamento foi realmente cinematográfico. Daqui 20 anos vamos contar a quem não viveu esse 2009 o que aconteceu com o Felipe Massa e poucos também irão acreditar no simples, porém grave acidente que sofreu o ferrarista.

Duvidarão com mais força, porque o Massa deve sair dessa sem quaisquer seqüela e ainda há de tornar-se campeão mundial.

Mas garanto que assim como o espetacular acidente envolvendo Felipe Massa, o meu também teve um dedinho de ajuda para poder estar aqui hoje escrevendo estas linhas.

As casas do cruzamento, o paralelepípedo e a terra da estrada de chão estão lá até hoje para não me deixarem mentir.

1 comentários:

SkateComMédia disse...

Colega Eduardo Daniel, com "certa" frequencia acesso o Gelo em Marte, pois me divirto em ler os caracteres digitados com mãos de esquerda, as mesmas que ando sentindo falta no jornal impresso.

Em paralelo ao Felipe Massa, retirando a questão "velocidade", foi não estar no plim plim.

Abraço, é nois!

Faisca.

Em relação a sair dos 90kg, já tentasse o skate? Deveria tentar... Bem que no meu caso, não ajuda muito no quesito barriga.

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CONTATO
Colaboradores Ana Carla Teixeira, Anderson Paes, Camila Rufine, Carlos Karan, Deyse Zarichta, Eduardo Daniel, Emanuela Silva, Emanuelle Querino,
Emmanuel Carvalho, Fabiano Bordignon, Fabrício Espíndola, Francine de Mattos, Gabriel Guedes, Germaá Oliveira, Guilherme Marcon, Isabel Cunha, Kellen Baesso, Manuela Prá, Patrícia Martins, Thiago Antunes, Thiago Schwartz, Tiago Tavares, Valter Ziantoni,Van Luchiari, Vanessa Feltrin, Vitor S. Castelo Branco, Viviany Pfleger

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