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sexta-feira, agosto 14, 2009

Um ateu abençoado

*Eduardo Daniel | www.twitter.com/eduardosdaniel

Sexta-feira. Dez horas da manhã. Dia de sol. E tinha que ser assim. Ou melhor, podia ser numa segunda ou numa quarta também, mas que fosse as dez e numa manhã de sol. Essas foram as primeiras orientações que recebi da dona Benta, uma senhorinha de 80 anos com vitalidade de 50, avó da minha esposa.

O objetivo dela: tirar o sol da minha cabeça, que de acordo com o seu diagnóstico, é a causa de minhas cefaleias que me acompanham desde sempre.

Não possuo religião, apesar de acompanhar a família, católica, nos ritos tradicionais – muito mais por conveniência. Tenho uma forte tendência para não acreditar em Deus pelo simples fato de procurar explicação científica e histórica em tudo o que os religiosos chamam de bíblico ou sagrado. Mesmo assim, aceitei o convite da dona Benta que se propôs a me curar.

Uma das riquezas do Brasil é justamente este sincretismo religioso. Acho até que as portas das igrejas precisam estar abertas para seguidores de outras religiões. É absurdo um católico encontrar pecado se um fiel de sua igreja entrar em uma evangélica ou vice-versa. Que mal haveria se o Deus é o mesmo?

Isso sem falarmos dos terreiros, centros espíritas e outras manifestações religiosas no país, que convivem pacificamente – salvo um ou outro ato isolado de intolerância.

Se dentro de tanto sincretismo, que problema teria se um ateu fosse benzido por uma católica, num rito praticamente indígena, em um bairro com nome de padre, Dehon, em uma rua com nome de papa, Pio XII?

O banquinho escolhido para que eu sentasse com meus quase cem quilos foi o menor possível. Com 1,78 metros qualquer cadeira me tornaria uma montanha inatingível para dona Benta e seus pouco mais de um metro e meio.

Cerimoniosamente ela põe água até a metade em uma pequena garrafa de vidro transparente. Em seguida dobra cuidadosamente duas camisas de homem com botão – no caso, do seu João, seu esposo – e uma toalha de rosto totalmente branca.

Sento de costas para o sol, ela coloca as três peças sobre minha cabeça e emborca a garrafa. Pelo espelho vejo as bolhas se formando dentro da garrafa. Dona Benta pressiona os objetos em meu cocuruto e chama a atenção:

— Ta vendo meu filho? As bolhas “fervendo” é o sol na tua cabeça.

O logradouro está deserto e silencioso. O sol da manhã dá uma preguiça gostosa. Em nossas sombras a vejo fazer o sinal da cruz e logo em seguida, em um murmúrio característico das benzedeiras, interrompe o canto descompassado dos pardais:

— Que curo? – pergunta ela.

— Mal de dor de cabeça! – respondo, como antes combinado.

- Aqui chegou o mal de dor de cabeça, vou te afastar de constipação braba. Constipação, achacado, adoentado, torturado e o sangue derramado – continua dona Benta e mais uma vez pergunta:

— Que curo?

— Mal de dor de cabeça!

— Mal do tempo, mal do vento. Mal do dia, mal do sol, mal do fogo, mal da água, mal da noite, mal da estrela e ar ruim – finaliza sem parar de fazer cruzes em minha cabeça com o polegar da mão direita, segurando a garrafa com a esquerda.

Dona Benta fica em silêncio por instantes e logo depois fala como aqueles que revelam um segredo descoberto ao ler o passado nas entranhas da memória alheia:

— O Eduardo brincava muito no sol, com a cabeça desprotegida. Jogava bola, andava de bicicleta. O pai dele o chamava pra sombra, mas ele era teimosinho.

Meu filho, de quatro anos, assiste a tudo e nessa parte esboça um sorriso malicioso. Dona Benta termina a benzedura:

— Deus é o sol. Deus é a luz. Deus é a mesma claridade. Deus é o sumo da verdade. Se for ar, sangue derramado ou ventocidade. Deus nosso senhor tire desse lugar, que não se torne mais a dar.

1 comentários:

Marcia Silva disse...

Que Dona Benta possa dar asas a muitos outros escrevedores. Tente encontrar uma explicação pra delícia de texto que acabo de ler. Duvido que consiga! Sim, Deus existe e te faz cantarolar entre as linhas. Sortudos somos nós, os seguidores do blog. Hahaha.

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CONTATO
Colaboradores Ana Carla Teixeira, Anderson Paes, Camila Rufine, Carlos Karan, Deyse Zarichta, Eduardo Daniel, Emanuela Silva, Emanuelle Querino,
Emmanuel Carvalho, Fabiano Bordignon, Fabrício Espíndola, Francine de Mattos, Gabriel Guedes, Germaá Oliveira, Guilherme Marcon, Isabel Cunha, Kellen Baesso, Manuela Prá, Patrícia Martins, Thiago Antunes, Thiago Schwartz, Tiago Tavares, Valter Ziantoni,Van Luchiari, Vanessa Feltrin, Vitor S. Castelo Branco, Viviany Pfleger

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