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segunda-feira, agosto 03, 2009

O frio e a febre

*Eduardo Daniel | www.twitter.com/eduardosdaniel

Naquela noite fez um frio dos infernos. O ar gelado penetrava nas entranhas e as extremidades do corpo ameaçavam se desprender como icebergs se desgarram das ilhas congeladas nos pólos da Terra.

Nos livros de geografia a Era do Gelo é descrita como um período geológico de milhares de anos atrás. Porém, posso afirmar que naquela noite de julho de 1997, o fantasma da Idade do Gelo soprou seu bafo glacial sobre Tubarão, no Sul de Santa Catarina.

Quando servi o Exército, existia na 3ª Companhia do 63º Batalhão de Infantaria, um posto de serviço para os soldados de guarda que era almejado por todos: a hípica.

A hípica nada mais era do que um grande terreno praticamente abandonado, com um estábulo imenso e um rancho que fazia às vezes de casa e guarita aos infantes. Nunca soubemos ao certo porque guardávamos aquela terra, mas o dia de guarda lá era muito mais a vontade. Acreditávamos que a companhia tinha conquistado aqueles hectares em uma batalha judicial. Como os nossos superiores sempre diziam que a curiosidade é uma característica feminina, não questionávamos sobre o assunto. Curiosamente, de "nós" os militares sempre quiseram saber tudo, tornando-se hábeis nos métodos persuasivos para obter segredos durante os anos de chumbo.

Na hípica, assim como nos outros pontos do quartel, três soldados se revezavam como guardiões “da hora”, como é conhecido o período de vigília. Enquanto um soldado tinha a missão de ficar em alerta por duas horas, os outros descansavam. Na hípica, fora dos muros da companhia, um cabo ficava com os rasos. Com uma caminhada de cinco minutos, o quarteto estava de volta à caserna.

Foi num sábado que a Antártica estendeu sobre o solo Barriga Verde o manto gelado do Período Glacial. Meu horário, desgraçadamente seria o segundo, o mais temido, fizesse frio ou calor. Na madrugada, fica das duas às quatro da manhã acordado. À noite, o infeliz assume a guarda das oito às dez. Sai do posto, faz um lanche e pode aproveitar as quatro horas de intervalo para descansar. Caí na cama por volta das onze e perto das duas o companheiro do horário anterior bate no coturno secamente:

– Acorda, tá na hora.

O coturno, aliás, no inverno, vira um refrigerador portátil para os pés. Dormir é uma verdadeira tortura. O frio sobe pelas pernas como formigas atacam um desavisado que pisa e fica em cima do formigueiro. Nem naquela noite glacial, quando juro ter visto mamutes circulando com a maior naturalidade, pudemos tirar as bota militares para dormir.

Deitei com uma gripe armando-se em meu interior gelado. Durante o sono leve e mal aproveitado, nem a febre que me atingiu esquentava meu corpo encolhido no beliche de campanha. O frio judiava, ardia.

Quando fui acordado, a impressão era a de que adormeci profundamente apenas cinco minutos antes.

Durante as duas horas em que assumi a guarda, o sono não teve coragem de me visitar. Deve ter escolhido paragens mais quentes naquela noite em que, como diz a minha mãe, o frio estava de rachar. Passei os 120 minutos de um lado para o outro dentro do rancho, enrolado em uma coberta a procura de calor. O fogo de chão não era capaz de aplacar o frio.

Quando descontei em cima do próximo guarda o que o anterior me fizera sofrer ao acordar e dormi das quatro as seis, a febre e o frio aumentaram. Os segundos duravam horas para passar.

Uma nova guarnição nos rendeu as oito, mas desde as seis e meia estávamos na rua catando raios de sol para colocar nos pés. A pele das mãos parecia que seria arrancada de tanto que as palmas eram esfregadas. Mesmo quem não fumava brincava com a fumaça que escapava involuntariamente da boca e do nariz.

Deixei o quartel pouco antes das novas horas. Do trajeto até em casa o frio e a febre devem ter congelado minha memória. Lembro muito bem do momento de tirar o coturno e libertar as duas pedras de gelo tamanho 44, trancar o banheiro, sentar no vaso e encostar os pés no aquecedor de serpentina.

Não tirei a farda. Apoiei os cotovelos nos joelhos, meti o rosto entre as palmas das mãos, tal um derrotado que esconde o choro envergonhado. No calor que derretia as calotas polares que trouxe nos bolsos, adormeci.

Nestas duas semanas que acabaram de passar, foi como se estivesse de guarda naquela noite de 12 anos atrás na hípica.

Agosto já abriu as portas do calendário. O mês mais frio e longo do ano foi embora. A folhinha de julho já está no lixo. O sol vai chegar até nossos pés congelados e ao fecharmos os olhos adormeceremos com as carícias e carinhos da estrela central do nosso sistema planetário, que mesmo a noite, nos embala em seu abraço caloroso.

Isso até reclamarmos de novo pela volta do friozinho gostoso...

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Colaboradores Ana Carla Teixeira, Anderson Paes, Camila Rufine, Carlos Karan, Deyse Zarichta, Eduardo Daniel, Emanuela Silva, Emanuelle Querino,
Emmanuel Carvalho, Fabiano Bordignon, Fabrício Espíndola, Francine de Mattos, Gabriel Guedes, Germaá Oliveira, Guilherme Marcon, Isabel Cunha, Kellen Baesso, Manuela Prá, Patrícia Martins, Thiago Antunes, Thiago Schwartz, Tiago Tavares, Valter Ziantoni,Van Luchiari, Vanessa Feltrin, Vitor S. Castelo Branco, Viviany Pfleger

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